_ Foram, mais uma vez, dias difíceis…
_ Porquê?
_ Porque tudo começou a dar certo demais e isso não é nada bom.
Queria muito gritar. Algo estava errado e me incomodando.
Primeiro, vivendo em um circo de verdade, com animais e muita gente trabalhando o tempo inteiro, tive contato direto com o que chamamos de circo tradicional.
Pessoas simples, que fazem muito e ganham pouco. Verdadeiros guerreiros que nem imaginam o quão importante são para a continuidade da história do circo.
Como em toda sociedade, o circo também tem hierarquia: tem o dono, (que quase nunca está por lá), o diretor artístico, (que é aquele que se encarrega de ter um show que funcione), o « regisseur », (uma espécie de gerente geral. Ele vai te dizer o que fazer caso aconteça alguma coisa. Por exemplo, se você deverá comparecer a uma reunião ao final do show, se precisar e quiser ensaiar no picadeiro, deverá pedir a ele um horário. É com ele também que você discutirá algumas questões financeiras, (mas não é ele quem paga nada, ele apenas tem o poder de dizer, por exemplo para a tia da cozinha, que você não precisa pagar para comer pois no seu contrato foi acordado assim).
Logo depois estão os artistas. Nem preciso dizer, mas direi mesmo assim, que são eles que podem ou não fazer um show funcionar. Por mais efeitos de luz e música que se usem, um número mediano faz de um espetáculo, mediano. O que o público sentirá e falará no final é muito importante. Ainda não inventaram melhor propaganda que o “boca-a-boca”.
Aqui também estão os bailarinos que normalmente trabalham mais do que os artistas e ganham menos.
Depois dos artistas e corpo de baile vêm os técnicos de som e iluminação acompanhados dos « barreiras ». Os « barreiras » são aqueles caras que arrumam a cena pra você. Eles devem ser muito rápidos e eficazes. São eles, por exemplo, que tiram o tapete de cena quando os animais deverão vir ao picadeiro e recolocar quando os artistas devem voltar à cena. Um « barreira » é o « pedreiro da cena »: o arquiteto ganha horrores e ele que faz um enorme trabalho, quase sempre é mal remunerado.
Estou citando apenas o lado artístico. Ao lado de toda essa estrutura, estão todos aqueles que trabalham para que o circo funcione como um todo. Isso vai desde a administração, passa pelo cara que vende pipoca até aquele que se ocupa em limpar o cocô dos elefantes. Todos, absolutamente todos são importantes.
Neste circo onde estou, trabalham mais de 70 pessoas! É incrível!
Enquanto muitos estão ali apenas para ganhar seu dinheiro, outros estão ali para tentar mudar o mundo. Como eu. Sou aquele sujeito que sofreu bastante com esta vida, às vezes miserável, às vezes fantástica.
Sou aqui o que eles chamam de « star ». Não, não estou me sentindo « a última bolacha do pacote ». A performance que eu tenho, vir do Brasil e ter passado pelo Cirque du Soleil, me dão este « status ». Quando cheguei, o dono veio me ver para dizer que eu conseguiria ser famoso por aqui pois eu tinha o tipo de humor exato para este país.
Vim parar aqui pois me chamaram para participar de um festival internacional e logo depois me propuseram este contrato. Inicialmente de 3 meses mas que pode ser prorrogado.
Devo admitir que, no festival, meu número ainda não estava como eu gostaria que estivesse. Na verdade nunca está para um leonino perfeccionista.
Depois do festival, recebi uma enxurrada de críticas de artistas. Umas construtivas outras nem tanto. Entre elas, estavam por exemplo uma citação em que dizia que eu era um excelente cômico mas minha técnica de parada de mãos era ruim. Enquanto os cômicos diziam que eu explorava apenas 40% do meu potencial.
Sendo assim, comecei a fazer algo que não devemos fazer jamais: deixar que as críticas toquem o seu coração e coloquem em xeque sua capacidade. Temos que lembrar que, se as pessoas se sentem incomodadas é porque de alguma forma você conseguiu tocá-las.
Para um artista, as pessoas podem ou não gostar. Se elas ficam indiferentes, aí você deve começar a se preocupar.
Uma das frases que ouvi foi « você deve fazer assim, pois assim você passará para o próximo ‘level’ », que quer dizer em bom português, subir um degrau.
Então comecei a tentar coisas diferentes. Provar coisas diferentes. Tive bastante medo. É muito difícil sair da zona de conforto. Mas eu sabia, e ainda sei que posso avançar muito pois sempre estou disposto a mudar no último segundo. Tudo é possível se você se permite ao erro. Você pode e deve errar. O acerto, nada mais é do que uma centena de erros « bem sucedidos ».
Fazem 2 dias que as coisas mudaram. Para muitos isso não significa nada. Pra mim é o começo de uma nova história. Não estou mais como um acrobata na rua ou num grande circo, fazendo parte de um todo. Sou aquilo que eu estava buscando ser depois de muito tempo: um palhaço que está sozinho em cena crescendo, aprendendo e pegando o que chamamos « timming ».
Antes eu testava minhas piadas nos espetáculos de rua. Precisava ser interessante para que não fossem embora e me pagassem no final do show. Agora, estou diante de 2000 pessoas que já pagaram seus ingressos e estão « sedentas » para ver algo interessante.
Quando entendi e percebi, que não preciso mais fazer nada correndo e que posso tomar meu tempo para impressionar meu público, as coisas começaram a funcionar.
Estive tão contente que decidi comemorar. Acabei indo comemorar com russos e ucranianos. Para que você entenda bem o que eu quero dizer, fui comemorar com gente que bebe de verdade. Sim, eles amam vodka e farão tudo para que você ame também.
Fiz a besteira de tentar acompanhá-los sabendo que teria um show no dia seguinte. Não estava bêbado mas sabe quando você se lembra que bebeu na noite passada e tem leves tonturas? Pois é: esse show seria o que eu chamo de desafio.
Estava com medo. Minhas pernas e braços tremiam. Não porque eu não tinha força para fazer, mas porque em minha cabeça dizia ter cometido um erro. Explico: neste circo, existem dois shows. A gente reveza. Se você trabalhou hoje às 3, amanhã fará o show das 7 e vice-versa.
No segundo show, existe um ginasta que foi muito famoso no país. Mas que deu muito dinheiro para amigos, perdeu bastante coisa e vive bêbado. Sua esposa vive brigando com ele. Eu o chamo de astronauta, pois ele sempre está numa viagem ao cosmos. Ele tem um coração muito bom, é muito gentil e graças a ele, por exemplo, comecei a treinar com os russos do trapézio.
Mas dá uma certa pena vê-lo às vezes. Fiquei seriamente pensando se este não seria o meu fim.
Aí, se vocês me entendem bem, verão porque tive medo de fracassar mais uma vez. Tive medo que as coisas não funcionassem na cena e eu me sentisse ainda mais depressivo. Fiquei com medo de ser apenas mais um em meio a tantos que tentaram, tentaram, tentaram e fracassaram.
O que me diferencia de todos os demais é que sou aquele cara que pensa e que não se sente produto. Ainda estou em desenvolvimento. Tenho minha ideologia, minha forma de pensar, agir e tentar fazer desse mundo um lugar melhor mas nunca esqueço que ao meu redor, existem outros universos, ideologias e formas de pensar que podem fazer de mim alguém mais capaz, competente, verdadeiro, simples, humilde… Estou crescendo, aprendendo enfim, vivendo.
Se um dia você passou por mim e deu sua opinião a respeito de qualquer assunto, saiba que você também faz parte dessa história.
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